sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Melodia

Ilustração © by Patrícia Magalhães
Melodia


Sabes, tenho os dedos dormentes de tanto escrever-te.
As cartas são tantas, e as palavras que já nem conheço dizem-me que não mais te escreva.
Como posso não escrever-te?
Se o meu peito ainda te guarda um lugar cativo e tão grande como esta saudade que me veste de desejos.

Podia rasgar as pétalas das rosas vermelhas sangue que coloquei na jarra que um dia me trouxeste,
e podia voltar a tocar o piano de cauda que existe ao canto da sala.
Podia ainda recitar os poemas antigos que gostava e que foram prosa
sempre que sonhávamos de mãos dadas.
Mas sabes?
Podia viver, mas não sei…

A jarra está vazia e as rosas de antes murcharam como folhas de um outono que passou por aqui.
O piano ficou mudo e os meus dedos estão dormentes pelo tanto que já te escrevi,
os poemas perderam os versos – espalharam-se pelo chão desta casa,
pelo fim que é tão grande, pelo tempo que só a mim me sobrou.
E os sonhos… os sonhos voaram contigo…

Podia cantar à primavera e pedir-lhe que volte,
plantar flores de mil cores no jardim e regar tudo com esperança,
preparar o chá para dois como antes fazia.
Prometer às sardinheiras das janelas que tudo recomeça a seu tempo.
Podia. Bem sei que podia.
Mas a jarra está vazia,
e o piano está mudo,
e os poemas… ah, os poemas…
estão transformados em cartas – as mesmas que te escrevi e que me deixaram estes dedos sem força para tocar o amor…

Ainda sinto cá dentro a melodia que tocava ao piano nas tardes de Domingo,
e o calor daquele sol atrevido que entrava pela janela e que se acomodava no meu colo,
e os teus olhos pousados nos meus olhos
como quem tudo diz, como quem tudo sente.
Mas no fundo, tudo mais nada é que saudade, e o meu coração, um náufrago,
que neste mar de coisas imensas ainda te procura, só para te contar que mesmo depois do fim,
ficou a melodia de um grande amor 
por reinventar…

*

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